Canção de madrugar (1)
De linho te vesti
De nardos te enfeitei
Amor que nunca vi
Mas sei.
Sei dos teus olhos acesos na noite
- sinais de bem despertar –
Sei dos teus braços abertos a todos
Que morrem devagar.
Sei meu amor inventado que um dia
Teu corpo pode acender
Uma fogueira de sol e de fúria
Que nos verá nascer.
Irei beber em ti
O vinho que pisei
O fel do que sofri
E dei
Dei do meu corpo um chicote de força.
Razei com meus olhos com água.
Dei do meu sangue uma espada de raiva
E uma lança de mágoa
Dei do meu sonho uma corda de insónias
Cravei meus braços com setas
Descobri rosas alarguei cidades
E construí poetas
E nunca te encontrei
Na estrada do que fiz
Amor que não logrei
Mas quis.
Sei meu amor inventado que um dia
Teu corpo há-de acender
Uma fogueira de sol e de fúria
que nos verá nascer
Então
Nem choros nem medos nem uivos
nem gritos nem pedras nem facas
nem fomes nem secas nem feras
nem ferros nem farpas nem farsas
nem forcas nem cardos nem dardos
nem guerras
(1) O génio e a força interior deste poeta que sempre recusou a «castração» da poesia e do poeta, levou a que os seus versos fossem cantados pelos nossos melhores intérpretes.
Esta poesia, cantada por quem apareceu e desapareceu dos meios artísticos, Hugo Maia de Loureiro, ainda é, para mim o sinal mais vivo de amor cantado à Liberdade, esse bem precioso que, não sendo bastante, é um verdadeiro pressuposto da vida em comunidade.
Acordei a cantarolar esta dificil - e antiga - canção. e entendo que neste blogue há lugar para todos os temas que possa e saiba abordar, e, naturalmente, para a poesia, particularmente a que nos liberta.
Precocemente falecido, fica aqui a minha homenagem ao ser social., pleno de energia criativa e criadora de uma interioridade intensa e «exteorizada», quer em música, quer em declamações em que era quase inegualável.
Poema recolhido de «As palavras das Cantigas», 5.ª edição, 1989.
Mais palavras para quê? Todos somos beneficiários da sua obra, mesmo os que ainda a ignoram ou, devastadores desse bem imprescindível, nem se dão ao luxo de indagar aqueles que, mesmo sem a ter - os poetas sempre serão livres - nos prepararam o caminho...